Concorrência Sucessória e o Trânsito Processual

Autores: Rolf Madaleno

                                                                     Rolf Madaleno *

                                                        

 SUMÁRIO

1.A culpa na separação judicial. 2. Estilhaços da culpa. 3. A culpa mortuária.  4. A concorrência sucessória. 5. A culpa funerária. 6. Bibliografia.

                     

1. A culpa na separação judicial

            Parece que a sinergia dos tempos, na evolução das relações familiares que dispensam a indagação processual da culpa na separação judicial teve pouca influência na organização final do vigente Código Civil brasileiro. Embora seja notória a tarefa ingloriosa de o juiz precisar distribuir culpas, conforme documentos que lhe acessam os cônjuges em refrega processual, ou confiando no relato de testemunhas ouvidas na instrução da separação litigiosa, todo esse movimento, como já advertia Di Lella,[1] inevitavelmente provocará uma falsificação da realidade matrimonial.

            As novas leis brasileiras das três últimas décadas já estreavam mecanismos de rejeição ao desenlace culposo do casamento, ou da estável união, quando a lei divorcista permitiu a proposição da separação judicial e do divórcio direto, conforme restasse judicialmente provada a existência de um ano ou de dois anos de fática separação.

            Editadas as leis de formação e dissolução da união estável, também dispensaram a pesquisa das causas que teriam levado ao término da informal relação afetiva.

            Conta Víctor Reina[2] que o exame da culpa conjugal encontra sua origem no direito canônico, de um tempo de prevalência do direito cogente que dominava toda matéria matrimonial, sendo desígnio do legislador que nada ficasse à livre vontade das partes. Entretanto, o direito canônico perdeu boa parcela de sua ingerência na evolução dos textos, e dos costumes sociais, embora o exame da culpa carregue uma boa dose de vingança daquele cônjuge que perdeu a companhia do seu parceiro nupcial.

            Mas, uma indagação já permitiu ser apresentada diante do paradoxo das leis brasileiras no trato da separação judicial, pois, se por certo tempo de fática separação acode a ruptura objetiva do casamento, por qual razão segue o legislador fomentando a separação subjetiva, com investigação da culpa de um dos cônjuges, frente à inocência do outro, absolvido na sentença e oficial reprovação.

           

2. Estilhaços da culpa

            Conforme relata Rodrigo da Cunha Pereira[3], os ordenamentos jurídicos apresentam uma forte tendência de substituição do princípio da culpa pelo princípio da ruptura, buscando afastar do processo o desnudamento da intimidade dos cônjuges desafetos, que, por sinal, já têm tristezas suficientes para dispensar uma traumática separação causal.

            Há com certeza, modos mais civilizados de findar judicialmente um casamento, ou a relação informal de uma união que já foi estável enquanto durou, sendo incontroverso que a formal ruptura dos laços afetivos deve ser cada vez mais facilitada pelo legislador, especialmente quando ele próprio inaugura o novo livro do Direito de Família do Código Civil em vigor, prenunciando no seu art. 1.511, só existir casamento se houver entre o casal plena comunhão de vida.

            No entanto, estranhamente, essa mesma codificação teima linhas adiante em perpetuar a velha fábula do único culpado conjugal, como que pretendendo compensar compreensíveis sofrimentos com um decreto judicial, de autoria culposa de um dos cônjuges.

            Para Mauricio Luis Mizrahi,[4] a psicanálise tem demonstrado que a atribuição de um único culpado pelo fracasso de um casamento sempre é falsa; porquanto as desavenças de um casal decorrem de dificuldades bilaterais relacionadas com a evolução de cada um. E que "a única culpa de cada um foi a de enganarem-se acerca de si mesmo e  do outro ao viverem em união."

            Sugere considere o magistrado ao sancionar a norma jurídica, unicamente os aspectos formais da separação, desconsiderando os aspectos subjetivos, porque o exame da culpa importa em "instaurar uma reprovação jurídica, desatrelada de todo o enfoque científico múltiplo, e que não pode ser desatendido: o psicoanalítico, psicológico, sistêmico, sociológico, antropológico, etnológico e etc.., e que esta atitude de encerrar o direito em uma torre de marfim mina, sem hesitação, a possibilidade de um trabalho coletivo."[5]         

            Portanto, discutir a culpa na separação conjugal desestrutura o grupo familiar, criando prováveis embaraços para as relações parentais e de harmonia pós-conjugal, tão essencial para a mútua cooperação dos antigos esposos que não se desincumbem das suas responsabilidades parentais.

3. A culpa mortuária

            Ainda sob a proveitosa inspiração da lição de Mauricio Mizrahi,[6] a verdadeira causa da atribuição de sanções jurídicas pela culpa conjugal, só formalmente emerge do descumprimento dos deveres matrimoniais, pois no fundo, a punição decorre realmente da perda de um sentimento; por haver o cônjuge falhado no seu compromisso de eterno amor.

            Contudo, se ainda é possível entender, sem mais concordar, que possam os cônjuges desafetos eternizar suas disputas no ventre de uma morosa e inútil separação judicial causal, qualquer sentido pode ser encontrado na possibilidade aberta pelo atual codificador ao permitir pelo atual art. 1.830 do Código Civil, que o cônjuge sobrevivente acione o Judiciário para discutir a culpa do esposo que já morreu.

            Abre a nova lei o exame da culpa funerária, ao prescrever que só conhece o direito sucessório do cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

            É a pesquisa oficial da culpa mortuária passados até dois anos de fática separação, quando toda a construção doutrinária e jurisprudencial já vinha apontando para a extinção do regime de comunicação patrimonial com a física separação dos cônjuges, numa conseqüência de lógica coerência da separação objetiva, pela mera aferição do tempo, que por si mesmo sepulta qualquer antiga comunhão de vida.

4. A concorrência sucessória

            Na nova configuração do direito sucessório brasileiro o cônjuge segue em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, para herdar toda a herança na falta de descendentes ou ascendentes do sucedido. Em contrapartida, se de um lado foi extinto o polêmico usufruto vidual, o cônjuge também passou a integrar a categoria dos herdeiros necessários, que o impedem de ser afastado da sucessão, e dependendo do regime de casamento irá concorrer com os herdeiros descendentes e ascendentes nos bens particulares do cônjuge falecido.

            A primeira classe a ser chamada na ordem de vocação hereditária é a dos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, tendo sido casados pelo regime da comunhão parcial de bens, da participação final nos aqüestos, ou no da separação convencional de bens, herdando o supérstite apenas sobre os bens particulares do sucedido, e em concorrência com a prole comum ou híbrida. Acaso casados pelos regimes da comunhão universal de bens e na separação obrigatória de bens, não incide o direito sucessório do cônjuge sobrevivente se concorre com descendentes.

            Na falta de descendentes são chamados em segundo lugar os ascendentes, também em concorrência com o cônjuge, só que agora independe do regime de bens e ingressa na herança concorrente do cônjuge supérstite a totalidade do patrimônio deixado pelo sucedido, e não mais apenas os seus bens particulares.

            Em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária do art. 1.829, inciso III do Código Civil, herda o cônjuge sobrevivente, a totalidade dos bens deixados se o falecido não deixou descendentes e nem ascendentes, também agora desimportando o regime de casamento.

            Todavia, prevalece em qualquer das hipóteses de convocação do cônjuge sobrevivente a hipótese do art. 1.830, que afasta o direito hereditário do cônjuge separado judicialmente, ou separado de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que a convivência se tornara impossível sem culpa do cônjuge sobrevivente.

5. A culpa funerária

            A sucessão hereditária do cônjuge sobrevivente em novidadeira concorrência com ascendentes e descendentes, está fundada na visão de Ana Luiza Maia Nevares,[7] no fato de "o cônjuge ser o único componente estável e essencial, uma vez que os filhos, em um determinado momento, irão se desprender daquela entidade, formando a sua própria comunidade familiar."         

            Portanto, deveria ser herdeiro somente o cônjuge sobrevivente que realmente coabitasse e convivesse com o sucedido ao tempo de sua morte, causando profunda estranheza a ressalva posta no corpo do art. 1.830 do atual Código Civil, tolerando uma fática separação por até dois anos, sem culpa do consorte sobrevivente.

            Conta José Luiz Gavião de Almeida[8], ter sido desiderato do legislador neste artigo 1.830, impedir que o cônjuge sobrevivo se beneficiasse de relação conjugal da qual ele não mais comunga, e cuja separação fática teria sido causada por sua própria culpa. Entretanto, curiosamente, embora tenha estabelecido no art. 1.511 do mesmo diploma civil, só existir casamento quando coexistir comunhão plena de vida, concedeu o legislador no direito sucessório uma espécie de extensão artificial de longos dois anos para a completa ausência de comunhão de vida. Ou seja, enquanto no direito familista a separação fática de apenas um ano já motiva o decreto objetivo da separação judicial, curiosamente no direito sucessório são apagados todos esses régios princípios há tanto consolidados na doutrina e jurisprudência brasileiras, conferindo herança pelo artifício de continuidade de um casamento já roto e que jaz no plano fático há dois longos anos.

            A única exigência colocada candidamente pelo legislador, foi a de conferir ao próprio cônjuge sobrevivo a tarefa judicial de demonstrar sua inocência na fática separação, debitando ao esposo sucedido a  exclusiva culpa funerária.

            Era totalmente dispensável essa novidade do direito ao outorgar tutela sucessória ao cônjuge sobrevivente que já estava fatualmente apartado de seu consorte, e, portanto, da sua função conjugal, pois ninguém haverá de contestar que uma prolongada separação reflete a toda evidência, a irreversível falência nupcial, tanto que o art. 1.511 reclama no casamento a existência de comunhão de vida entre os cônjuges, que devem coabitar (art. 1.566,II), pois o abandono (art.1.573, IV), a impossibilidade da comunhão de vida conjugal autorizam a separação judicial, e também quando houver ruptura da vida em comum há mais de um ano, e a impossibilidade de sua reconstituição (art.1.572, § 1º).

            Embora fosse do consenso geral não ser justo que alguém partilhe de bens surgidos durante a fase de separação fática que precede à extinção formal ou natural do casamento, sem qualquer explicação lógica, aparece o art. 1.830 do Código Civil conferindo ao consorte supérstite a titulação de herdeiro concorrente ou universal, embora a não-convivência, concedendo-lhe até dois anos depois da ruptura, a oportunidade de provar em dissenso judicial com descendentes, ascendentes e até colaterais, a sua inocência processual.

            Pontual observação de Arnaldo Rizzardo[9] ao consignar a infelicidade do legislador ao deixar de afastar qualquer pretensão sucessória no patrimônio surgido depois da sua separação de fato, especialmente porque a questão aberta com a sucessão do cônjuge falecido em plena separação informal irá gerar longas e desgastantes dissensões processuais, como que a perturbar o descanso do sucedido, que não livrará seus parentes até o quarto grau de serem convocados em ação sucessória incidental para provarem a culpa subjetiva do viúvo que já não mais vivia na companhia do autor da herança.

            Não fica nada difícil imaginar o desequilíbrio das armas que travarão a discussão judicial da culpa ou da inocência do cônjuge sobrevivente, afastado por até dois anos da convivência e coabitação conjugal, afora os naturais constrangimentos decorrentes dessa inusitada situação de confronto entre mãe e filhos, viúva e enteados, sobrevivente e seus parentes afins, como por exemplo, os seus sogros, sem descartar a disputa com os sobrinhos ou tios do sucedido pela herança de um patrimônio havido de um casamento que ambos os cônjuges já haviam definitivamente abandonado.

            Fatos terão que ser contestados por pessoas que não comungaram e nem testemunharam da intimidade conjugal do sucedido, e da sua súbita herdeira que retorna com folga de até dois anos de fática separação, para em nome de um matrimônio de pura ficção, esmerar-se em provar a sua completa inocência conjugal, empenhando-se em remexer e enlamear a saudosa memória do falecido cônjuge.

            Cria o legislador uma difícil disputa judicial de uma culpa funerária a ser coletada nos recônditos de uma sociedade conjugal usualmente discreta. Certamente a disputa pela herança será fonte de novas dissensões que não teriam sido apuradas durante a vida do casal, quer por desleixo ou conveniência pessoal, podendo preexistir uma separação de corpos que não foi igualmente ressalvada pelo art. 1.830 do Código Civil. E se o cônjuge mesmo inocente, já estiver namorando ou mesmo vivendo com outra pessoa, conservará a áurea de absoluta inocência, e ainda assim subsistirá o seu direito sucessório ?

            Enquanto isso o inventário restará paralisado, e o restante da família tratará de estraçalhar as sobras do respeito e do amor parental, apenas porque a mera separação de fato não foi capaz de repetir no direito sucessório os mesmos efeitos gerados no âmbito do casamento, reconhecendo a ruptura dos vínculos patrimoniais com a separação física dos cônjuges, que por si só já deixa indícios concretos da falência desse matrimônio.

            A nova versão legal dada às uniões conjugais passa pela idéia única de ela representar uma gratificação para os esposos, sob o risco de não atingir a sua primordial finalidade, perdendo qualquer sentido em pretender reconhecer em relações sem convivência e sem coabitação,  algum resquício de casamento. Portanto, quando dois adultos decidem eleger um novo plano para as suas vidas pessoais, dando cada um deles as costas para a sua primitiva relação, não se afigura nem lícito, e nem jurídico que um deles volte ao passado, vocacionando um suposto direito sucessórios, sustentado num liame já roto e reprovado pelo físico aparte do casal.

            Enfim, não faz sentido relevar a culpa na separação de fato, que apenas informa que o casal desunido ainda não havia processado a sua separação judicial, e se o legislador quisesse que o cônjuge informalmente separado pudesse herdar no caso de morte de seu parceiro, teria então de requisitar ao invés da prova da inocência do sobrevivente, indícios claros de que o cônjuge já morto, tudo fez para se reconciliar, e neste caso a viúva seria apenas premiada pela herança deixada por aquele que nunca deixou de amá-la.  

                                    

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil comentado, vol. XVIII, Coord. AZEVEDO, Álvaro Villaça, Atlas: São Paulo, 2003.

DI LELLA, Pedro. El matrimonio desquiciado y la culpa, LL. 1994-B-8.

MIZRAHI, Mauricio Luis. Familia, matrimonio y divorcio, Astrea: Buenos Aires, 1998.

NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional, Renovar: Rio de Janeiro, 2004.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A culpa no desenlace conjugal, In Repertório de doutrina sobre Direito de Família, aspectos constitucionais, civis e processuais, Coord. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim Wambier e LEITE, Eduardo de Oliveira, vol. 4, RT: São Paulo, 1999.

REINA, Víctor. Culpabilidad conyugal y separacíon, divorcio o nulidad, Editora Ariel, 1ª e., 1984, p.75, citado por MADALENO, Rolf. Direito de Família, aspectos polêmicos, Livraria do Advogado: Porto Alegre, 1998.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões, Forense: Rio de Janeiro, 2005.


 


* Advogado e Professor de Direito de Família na PUC/RS, Sócio fundador e Primeiro Secretário do IBDFAM, Vice-Presidente do IARGS.

[1] DI LELLA, Pedro. El matrimonio desquiciado y la culpa, LL. 1994-B-8.

[2] REINA, Víctor. Culpabilidad conyugal y separacíon, divorcio o nulidad, Editora Ariel, 1ª e., 1984, p.75, citado por MADALENO, Rolf. Direito de Família, aspectos polêmicos, Livraria do Advogado: Porto Alegre, 1998, p.171.

[3] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A culpa no desenlace conjugal, In Repertório de doutrina sobre Direito de Família, aspectos constitucionais, civis e processuais, Coord. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim Wambier e LEITE, Eduardo de Oliveira, vol. 4, RT: São Paulo, 1999, p.338.

[4] MIZRAHI, Mauricio Luis. Familia, matrimonio y divorcio, Astrea: Buenos Aires, 1998, p.198.

[5] Idem, ob. cit., p.199.

[6] Ibidem, ob. cit., p.202.

[7] NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional, Renovar: Rio de Janeiro, 2004, p.74.

[8]ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil comentado, vol. XVIII, Coord. AZEVEDO, Álvaro Villaça, Atlas: São Paulo, 2003, p.215.

[9] RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões, Forense: Rio de Janeiro, 2005, p.189.