A Retroatividade Restritiva do Contrato de Convivência

Autores: Rolf Madaleno

SUMÁRIO

  1. Conceito de regime de bens.
  2. A paridade conjugal.
  3. A mudança do regime matrimonial.
  4. A mudança do regime de bens na transição da convivência para o casamento.
  5. O temor do logro e do enriquecimento indevido.
  6. Bibliografia.

1. Conceito de regime de bens

Para o livro do Direito de Família, constante no atual Código Civil, havia sido projetado, por seu idealizador, apenas dois títulos e suas subdivisões, começando pelo Direito Pessoal, voltado para a regência dos princípios e normas que regulam a habilitação e celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, a dissolução da sociedade e do vínculo conjugal, as relações entre pais e filhos, o vínculo de parentesco e, passando pelo segundo título, relativo ao Direito Patrimonial, trata dos direitos reais e obrigacionais emanados das relações familiares.

Com o tempo, foram acrescentados ao projeto inicial dois novos títulos, um deles pertinente ao direito convivencial, para regular a união estável e o concubinato e o outro, relativo ao direito assistencial focado para a tutela e a curatela.

O Direito de Família poderia seguramente ser dividido apenas em dois grandes temas, buscando reger as relações de família do ponto de vista pessoal, nele incluindo a união estável e do ponto de vista patrimonial, regendo os efeitos econômicos do casamento e da convivência estável.

É o objetivo deste trabalho, destacar as normas relativas ao regime econômico matrimonial e convivencial, levado a cabo pelo presente Código Civil brasileiro nas suas disposições sobre os regimes de bens entre os cônjuges e no que couber, também às uniões estáveis.

Não se pode conceber um casamento sem regime de bens, pois são eles que disciplinam as relações econômicas entre os cônjuges durante o casamento e por igual, nas relações estáveis.[1]

Com o matrimônio vêm os gastos destinados ao sustento da habitação, despesas comuns de manutenção da casa, dos cônjuges e dos filhos, quando houver. E como não há casamento sem regime patrimonial, o Código Civil trata de disciplinar uma série de normas encarregadas de aclarar a origem, a titularidade e o destino dos bens conjugais, facultando algumas opções convencionais de livre escolha do regime nupcial em contrato pactício.[2]

A nova topografia familista do Código Civil ocupa-se fundamentalmente da idéia de sua privatização, inspirada na concepção contratualista do matrimônio. O Direito brasileiro passa por uma importante mudança, saindo de um sistema de eleição do regime de bens e sua imutabilidade e passando para um sistema de liberdade de escolha e de mudança incidental do regime matrimonial.

O vigente Código Civil introduziu no Direito brasileiro o princípio da mutabilidade do regime econômico do casamento e permitiu a alteração do regime de bens ou de algumas de suas regras após o casamento, adquirindo os cônjuges uma maior liberdade de atuação e desta forma desfazendo a idéia de que geralmente a mulher podia sofrer os influxos psicológicos do esposo, sem chegar a manifestar a sua vontade em condições de plena liberdade, tornando-se refém do marido.

Sempre foi temor do legislador que a mudança dos pactos pudesse ocultar uma falta de liberdade, ou uma vontade viciada, também servindo a proibição de mudança do regime matrimonial como elemento de segurança dos direitos de terceiros.

2. A paridade conjugal

A legislação brasileira recepciona com bastante atraso os fundamentos da mudança do regime econômico do casamento, especialmente quando alguns códigos, como o do México, já admitem a modificação do regime de bens desde 1870, o da Guatemala desde 1877, o da Costa Rica desde 1888 e enquanto isto, os sul-americanos seguiram fiéis ao principio da imutabilidade, não obstante na Europa, a legislação da Alemanha possibilite modificar o regime matrimonial, conforme o § 1.432 do BGB; também o Código Civil francês recepcione a mudança desde 1968 e a Espanha desde 1975.[3]

É que depois da Segunda Guerra Mundial foi se aprofundando a idéia de liberdade e de igualdade entre os gêneros sexuais, fazendo desaparecer a exigência da outorga marital e a figura do marido como representante de uma mulher considerada frágil e dependente, apontando a doutrina três fatores que influíram na organização do regime matrimonial: a começar pelas transformações econômicas e sociais surgidas pós-guerra, a idéia de igualdade dos cônjuges e que só foi acolhida entre nós com a Carta Federal de 1988 e, por fim, o princípio da não intervenção judicial na nova concepção de família.[4]

Incorporado pelo Direito brasileiro o princípio da igualdade, nasce uma nova forma de comunidade afetiva, que em sua grande maioria adota um regime de comunidade dos aqüestos, como resultado econômico de uma verdadeira associação, em total paridade de deveres, consideradas as funções de ajuda mútua e a conseqüente divisão dos resultados econômicos surgidos desta parceria.

José Luis de Los Mozos põe em cheque o princípio da igualdade dos cônjuges, que diz ser meramente formal e não real, do mesmo modo que é diferente a situação entre comprador e vendedor e entre mandatário e mandante e, que o contrário seria aceitar uma forma de “hermafroditismo jurídico”, pois que ainda que o legislador tenha utilizado a expressãoigualdade, o que verdadeiramente quer e propugna é uma igualdade real e não formal, e esta igualdade só pode ser alcançada mediante o reconhecimento de uma liberdade equivalente entre os que são iguais e os que se entendem como iguais. A igualdade real deve ser uma igualdade de fato e não apenas uma igualdade jurídica, não sendo desconhecido que o homem e a mulher ainda estão em posições jurídicas diferentes e que, portanto, sua liberdade deve ser vista segundo os contornos da própria dependência, gerando, com efeito, alguma restrição à liberdade plena de contratar o regime.[5]

3. A mudança do regime matrimonial

Com o estabelecimento constitucional da paridade dos gêneros sexuais, no tocante ao matrimônio foi preciso admitir o sistema de modificação do regime de bens depois de celebrado o casamento, ainda que os cônjuges nada tenham pactuado antes das núpcias. Agora os nubentes podem mudar de regime ou modificar algumas de suas cláusulas contratadas, desde as que suas alterações não prejudiquem os direitos de terceiros, como estabelece o § 2º, do art. 1.639, do Código Civil.

Para garantir que os direitos de terceiros não restem afetados até pelo desconhecimento da alteração do regime de bens, a lei impõe a publicidade da mudança post nuptias, pedindo ainda o legislador que os cônjuges justifiquem a sua pretensão.

Como já dito, a regra de transição da imutabilidade para mutabilidade do regime matrimonial depois de celebrado o casamento, é conseqüência do princípio da igualdade e da privatização do Direito de Família, que vem adicionando uma interpretação mais contratualista ao matrimônio e permitindo que as suas relações se impregnem do princípio consensualista do Direito Civil patrimonial, deixando que os nubentes possam ir adaptando as regras de sua vida em comum às mudanças e ao amadurecimento das suas relações pessoais e afetivas.

Até porque, se bem analisado, o outrora rígido Direito familista brasileiro, será imperioso concluir que sempre foi possível burlar a proibição de mudança do regime econômico de bens do casamento, pois os cônjuges jamais deixaram de intermediar, entre si, sem qualquer controle externo, escrituras de doações, assim como sempre puderam constituir empresas com livre determinação de suas participações sociais com quotas ou ações, não obstante, inicial resistência do legislador passado, reeditada pelo atual codificador, estabelece a proibição de contrato de sociedade entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória, ou destes para com terceiros.[6]

No passado, querendo os cônjuges burlar a proibição de alteração do regime matrimonial podiam dissolver a sua relação, liquidar o regime de bens e estabelecer outro regime na nova união e assim, elidir a vedação do art. 230 do Código Civil de 1916. Quisessem dividir bens de modo distinto ou evitar a sua partição, era suficiente dispor, em sua separação consensual, a exata linha de condução e o destino final dos bens, abençoando as suas cláusulas separatórias pela homologação judicial que dava toque final e oficial à dissimulada mudança posterior do regime de bens.

A jurisprudência brasileira vem pacificando as primeiras dúvidas ainda surgidas a despeito da alteração do regime de bens no curso do casamento, especialmente acerca da regra transitória do art. 2.039 do Código Civil, pois, constantes as incertezas em saber se os casamentos celebrados ao tempo da codificação revogada também podiam ser alvo de aplicação da nova regra de mutabilidade do regime. Sem maior sentido a preocupação, pois, bastava concluir que o ato de não aceitar a retroatividade da alteração do regime de bens para alcançar os matrimônios postos sob a égide da antiga codificação, seria justamente negar o princípio constitucional da igualdade, isto sem falar que seria atentar contra a dignidade das pessoas, pois só algumas seriam consideradas em pé de igualdade e muitas outras não teriam acesso à nova legislação.

O Superior Tribunal de Justiça em decisão da 4ª Turma relatada pelo Ministro Jorge Scartezzini, no REsp nº 730546, entendeu em admitir a alteração do regime de bens de casamento contraído antes da vigência do novo Código Civil.

4. A mudança do regime de bens na transição da convivência para o casamento

Tormentosa discussão ainda ocorre, no entanto, na possibilidade reconhecida por boa parte da doutrina e da jurisprudência que admitem pacto de separação convencional de bens firmado pelo casal às vésperas do seu casamento e estendendo a incomunicabilidade de seu patrimônio para o período em que mantiveram precedente união estável.

Cuida-se da retroatividade das disposições estabelecidas no pacto antenupcial quando convertida a precedente união estável em casamento ou mesmo na hipótese de simplesmente firmarem contrato de convivência, convencionado efeitos pretéritos para selar com o regime da incomunicabilidade, também as aquisições procedidas desde o começo da união.

Francisco José Cahali apresenta sólidos argumentos para conferir retroatividade ao contrato de convivência e assim fazer incidir os resultados da convenção sobre a situação já consumada, sendo perfeitamente viável aos conviventes estipularem, em contrato de convivência ou em pacto antenupcial, que o patrimônio passado e futuro são considerados particulares e de propriedade exclusiva do seu respectivo titular, afastando da partilha qualquer bem apresto ou aqüesto. Significa outorgar aos conviventes ou futuros nubentes a liberdade plena de reconhecerem que viveram em união estável e que a sua relação passada e seus onerosos aqüestos poderão ser ressalvados pela eleição, em contrato, de um regime de separação de bens que está zerando as comunicações passadas.

Diz Francisco Cahali em reforço de suas considerações, que impedir aos companheiros, com livre disposição sobre seus bens preexistentes ou futuros, de estipularem suas relações patrimoniais seria projetar restrições à capacidade dos conviventes, impondo-lhes uma limitação contrária à capacidade civil e ao exercício da propriedade, tangenciando até a inconstitucionalidade, diante dos arts. 5º, XXII, XXIII, e 170,III,[7] da Constituição Federal de 1988.[8]

Na mesma linha de argumentação escreve Simone Orodeschi Ivanov dos Santos,[9]entendendo, justamente, que o contrato de convivência se caracteriza pela possibilidade de retroação de suas disposições, considerando que não há qualquer vedação legal neste sentido e que o ordenamento civil confere aos contratantes liberdade de dispor sobre o seu patrimônio.

São de igual as conclusões extraídas por Antônio Carlos Mathias Coltro, ao aduzir sobre a inexistência de qualquer empecilho na elaboração intercorrente de contrato de convivência, “a que seus efeitos atinjam os atos anteriormente a ele concretizados”.[10]

É a festejada autonomia de vontade com tratamento diferenciado na união estável, particularmente diante da redação colhida do art. 1.725 do Código Civil,[11] que manda aplicar à união estável a comunicação dos bens exclusivamente adquiridos de forma onerosa, afastando da mancomunhão presumida os bens havidos a título gratuito ou por fato eventual. E esta presunção, que em princípio só se faz absoluta sobre os aqüestos adquiridos de modo oneroso, pode ser livremente relativizada por contrato escrito dos conviventes, cogitando em estabelecer em pacto escrito, tanto para o futuro quanto para o passado, fração diversa da metade ou regime de separação de bens.

É a lição trazida por Guilherme Calmon Nogueira da Gama quando realça a expressão, no que couber, constante do art. 1.725 do Código Civil, concluindo que na “união fundada no companheirismo revela-se impossível cogitar de qualquer dos regimes comunitários – mesmo o da comunhão parcial nunca existirá na sua plenitude quanto aos companheiros, como já foi analisado na evolução legislativa – razão pela qual o princípio do pacto (de convivência), em matéria de união extramatrimonial, sofre bastante restrição quanto aos bens que podem ter regras de comunicabilidade estabelecidas em decorrência da autonomia da vontade.”[12]

Esta tem sido a orientação desenvolvida, por exemplo, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, como ocorreu na Apelação Cível nº 70009019530, da 7ª Câmara Cível, relatada pela Desembargadora Maria Berenice Dias, em 25 de agosto de 2004, aceitando a celebração de matrimônio pelo regime da separação convencional de bens, que convertia um período de união estável anterior, tendo o pacto antenupcial feito as vezes do contrato escrito e retirando pela vontade contratual dos ex-conviventes que casaram, a comunicação dos bens adquiridos durante a precedente relação estável.

Esta conclusão encontraria sustentação no art. 5º, da Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, ao permitir que os conviventes afastassem por contrato escrito a presunção de condomínio dos bens móveis e imóveis adquiridos a título oneroso, por um ou por ambos, na constância da união estável, constando agora, a opção do contrato escrito, no art. 1.725 do Código Civil.

Neste norte, tem realmente sido fértil a jurisprudência gaúcha ao referir que a Lei nº 9.278/96, ao admitir a presunção de comunicação dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, também aceitou que esta comunicação fosse afastada pela confecção de um contrato escrito em sentido contrário.[13]

Contudo, o temário não tem sido assim tão pacífico em outras fontes de doutrina e até da legislação, como no caso do Projeto de Lei nº 2.686/96, conhecido como “Estatuto do Concubinato”, que previa no parágrafo único do art. 4º, que “as disposições contidas na escritura só se aplicarão para o futuro, regendo-se os negócios jurídicos anteriormente realizados pelos companheiros segundo o disposto nesta Lei, sem prejuízo da liberdade das partes dividirem os bens, de comum acordo, no momento da dissolução da entidade familiar.”[14]

Por conta desta dissensão e dos seus reflexos econômicos, jurídicos e sociais, merece reflexão mais detida a eficácia retroativa das disposições patrimoniais entre os conviventes, pois, não é por menos que a legislação brasileira exige a adoção de escritura pública para o pacto antenupcial e também não é sem motivo que o art. 1.639, em seu § 2º, só admite a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros. 

 

 

5. O temor do logro e do enriquecimento indevido 

Sempre defendi que a mutabilidade do regime de bens exige redobrada cautela do intérprete da lei, que tem a tarefa de julgar a viabilidade da mudança intercorrente do regime de bens dos cônjuges, pois sua livre possibilidade poderia abrir as portas do abuso à inevitável fraqueza do cônjuge ainda tomado pela cegueira da paixão,[15] salientando Teresa Arruda Alvim Wambier,[16] que na conversão da união estável em casamento, celebrado com pacto antenupcial de separação de bens, existe justamente o risco de um dos nubentes impor o pacto de separação ao outro, exatamente para locupletar-se dos bens adquiridos pelo esforço comum de ambos, na constância da pretérita união fática.

O próprio e culto professor José Francisco Cahali admite que a estipulação com efeito pretérito não é totalmente ilimitada e ressalta que o contrato de convivência previsto no art. 5º, da Lei nº 9.278/96 não corresponde a uma opção a determinado regime de bens e que a sua finalidade é apenas a de definir os efeitos patrimoniais decorrentes da união, especialmente em razão da presunção de condomínio. Por fim, portanto, não há como contratar na união estável, um regime de comunhão universal, cujos aprestos só poderiam ingressar no acervo do outro por expressa e própria doação. E arremata: “Não sendo um pacto antenupcial, inexistindo previsão legal sobre regime de bens, inadequado dar retroatividade ao contrato sobre bens particulares preexistentes ao início da relação ao pretenderem as partes, a comunhão de bens anteriores à convivência, o instrumento apropriado é, se relativo à imóvel, a doação, com as suas formalidades, não o contrato de convivência.”[17]

Curioso impasse, pois desejando os conviventes que mantém uma precedente união estável ajustar a incomunicabilidade dos bens já adquiridos durante a sua relação, poderão firmar o contrato de convivência previsto no art. 5º, da Lei nº 9.278/96, que cedeu lugar para o art.1.725 do vigente Código Civil[18], mas também podem desejar reverter a sua união livre em casamento e se fizerem a opção de pactuar um regime convencional de separação de bens, poderão em tese, atribuir efeito retrooperante ao regime escolhido.

Afigura-se visivelmente injusta a aplicação, pela jurisprudência, de dois pesos e de duas medidas para a mesma situação fática. Acontece que, se um homem e uma mulher, vivendo em união estável, resolverem celebrar um contrato de separação de bens, esta avença não poderia incidir sobre os bens que já se tornaram comuns pelo relacionamento passado, só podendo refletir sobre o patrimônio futuro, mas nunca atingindo o acervo pré-existente, fruto do esforço comum já empreendido, especialmente se segue hígida a união, pouco importando se como conviventes ou como cônjuges que converteram a convivência estável em casamento.

A conclusão evidente é que a perpetuação do relacionamento é a mostra inquestionável de que a sua relação segue sólida e imperturbável, só vindo a reforçar a noção de comunhão de bens e de interesses, tanto que continuam a levar juntos a vida.[19]

Portanto, se a relação não sofreu qualquer solução de continuidade e seguem os conviventes inabaláveis em sua convivência afetiva, a única conclusão é no sentido de que os direitos já adquiridos não podem ser modificados, pois devem liquidar a vida patrimonial pregressa, promovendo a partilha dos bens amealhados durante o primeiro período da união, sob pena de restar escancarada a porta da burla e do enriquecimento indevido, sendo oportuno o alerta feito por Guilherme Loria Leoni, de existirem “contratos que são verdadeiras imposições de um cônjuge a outro para que a união se mantenha – isto é coação, mais uma espécie de vício de vontade a ser visto”.[20]

Basta observar que o súbito contrato de convivência regulando o passado patrimonial dos conviventes que seguem juntos, não permite a opção do regime da comunhão universal de bens, salvo que formalizem escritura de doação, para bens imóveis, pois é impossível transferir e acrescentar patrimônio de um parceiro para o outro, apenas com um contrato de convivência, embora possam adotar o regime da comunhão universal, por pacto antenupcial, firmado às vésperas da conversão da união estável em casamento.

O contrato incidental de convivência só tem tráfico para empreender um regime de separação de bens, ou seja, só serve para impor restrições e não para ampliar ou acrescer direitos.

Portanto, se em princípio, cônjuges e conviventes podem estabelecer quantas disposições tenham por convenientes na administração e gestão de seus bens, esta liberdade de contratar deve ficar sempre dentro dos limites do próprio contrato, observados os princípios da boa-fé, da ética e da lealdade, e evitando o enriquecimento ilícito. Seria lícito qualquer regime novo que ampliasse a comunicação dos bens, como a adoção, pelos ex-conviventes, em pacto antenupcial, da comunhão universal, em que trocam a comunhão parcial ou a total separação de bens por um regime que agregue novos bens, mas jamais que possa retirar bens já adquiridos de modo oneroso durante o período de relação estável que antecedeu à conversão em casamento ou a nova estipulação contratual.

O que efetivamente justificaria dissolver uma sociedade afetiva de divisão de aqüestos e começar imediatamente outra nova relação com o mesmo parceiro, isto quando não optarem apenas por firmar contrato de não-comunicação dos bens que já haviam adquirido ostatus[21] e nunca presumida pela singela alteração contratual de um regime de comunicação de bens em outro de total separação, implicando na súbita e informal renúncia da meação dos aqüestos de um dos parceiros e a sua inclusão na meação do outro. de comuns. Por evidente, que a hipótese instiga a promover a prévia liquidação dos bens da primeira relação, mesmo que reste evidenciada a sua pura e simples continuação, notadamente, porque este mesmo contrato que não admite acrescentar bens imóveis, senão através de uma escritura de doação, não pode admitir que um dos conviventes renuncie aos bens que já lhe pertencem pela presunção de condomínio e de comunicação, até porque é princípio consagrado de que a renúncia sempre há de ser expressa

Sob o risco de convalidar a fraude, toda a modificação de um regime econômico de comunicação de bens, que na constância da união venha a restringir direitos, pressupõe a prévia liquidação do regime anterior e correlata divisão dos bens já amealhados pelo regime automático da comunhão parcial, aplicado à união estável, na ausência de precedente contrato escrito.[22]

Aceitar a renúncia após a aquisição do patrimônio, por contrato escrito pelos conviventes ou porque decidiram casar e firmar pacto antenupcial de completa separação retroativa de bens, só poderia ser considerada válida quando não prejudicasse terceiros e quando não atentasse contra a ordem pública. Aliás, não é por outra razão que a lei civil põe ao encargo do juiz de família a decisão sobre a mudança do regime matrimonial de bens, mandando que sejam declinadas as causas e criando todo um roteiro para que não haja prejuízos não só para terceiros, como inclusive para os cônjuges.

Calha neste espaço re-questionar qual seria a reação judicial de uma pretensão de mudança do regime econômico da comunhão universal de bens de sólido e rico casamento, cujo cabedal foi construído exatamente durante matrimônio. Seria assim tão simples aceitar que a esposa promovesse a renúncia retroativa de sua meação, optando talvez, na quadra final de sua existência, pelo regime convencional da completa separação de bens. E se a resposta for positiva, então está inaugurada a estrada que leva a doação gratuita dos bens conjugais a um dos consortes, deixando doravante de ser devido por exemplo, imposto pelo excesso de meação na partilha dos bens conjugais, pois será muito mais econômico desdobrar a separação do casal em duas etapas: Primeiro, promovendo a alteração do regime de comunhão para o de total separação, ficando, por exemplo, o marido com a integralidade dos bens que já estavam registrados em seu nome; passo seguinte será ajuizar a separação judicial consensual, nela informando inexistirem bens para dividir, tendo em conta que na atualidade estão casados pelo regime da completa separação de bens, conforme precedente alteração judicialmente homologada.

Por evidente que não quer a lei o enriquecimento sem causa, tanto que o vigente Código Civil contém regras expressas para a sua vedação.[23] Se bem visto, a renúncia de direitos requer menção expressa, por escritura pública ou por termo nos autos de uma separação judicial ou de dissolução de uma união estável. A renúncia dissimulada por simples contrato escrito de convivência, que afasta a presunção de comunhão parcial, deve ser rejeitada por seu nefasto efeito de enriquecer sem justa causa apenas o companheiro beneficiado pela renúncia do outro e por ser claramente contrário à moral e ao Direito, permitir restrições de ordem material de efeito retroativo. Apagar acordos tácitos de comunhão parcial justamente quando a lei presume a comunicação dos bens pela inércia contratual dos conviventes, o que não deixa de ser uma opção consciente pelo regime da comunhão parcial, para depois permitir que, por mero contrato surgido muitas vezes do desgaste da relação a renúncia destes, fosse um meio de empobrecer um dos parceiros em benefício do outro, a título exclusivamente gratuito.

E se convencionam dissolver uma entidade familiar para formatar outra de regime restritivo de bens, não obstante permaneçam em cena os mesmos figurantes da peça original, esta primeira sociedade que sequer se dissolve, mas apenas troca de titulação patrimonial, para dar lugar a novo regime de restrição de direitos por mero contrato particular, deve ser obrigada a promover a prévia liquidação do acervo já construído em nome do casal convivente, tratando seus personagens de fixar e ajustar os encontros e a divisão das meações que já lhes pertencem pelo precedente silêncio contratual, pois nunca trataram de esboçar e contratar qualquer regime anterior de renúncia de suas meações.

Ora, se quer a lei no ato de mutabilidade do regime de bens preservar os direitos e interesses de terceiros,[24] sem sombra de dúvida que jamais foi desejo do legislador aceitar que justamente o meeiro da relação afetiva reste prejudicado em seus direitos, como se o legislador não soubesse que a sua principal função é a de organizar e regulamentar os interesses materiais tanto dos cônjuges como dos conviventes, pois ambos expressam a entidade familiar tutelada pela Constituição Federal e não parece que em tempos de estado democrático de Direitos, de igualdade e dignidade humana, pudesse ainda existir algum espaço para restrição de direitos e dissensões que apenas consagrariam a sempre odiosa fraude à meação.

6. Bibliografia

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GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Regime legal de bens no companheirismo,In Questões controvertidas no novo Código Civil no Direito de família e das Sucessões, vol. 3, São Paulo: Método, 2005.

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 * Advogado e Professor de Direito de Família na PUC-RS, Diretor Nacional do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) Vice-Presidente do IARGS (Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul), www.rolfmadaleno.com.br

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Direito de Família, vol. V, 14ª e., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.187.

[2] MADALENO, Rolf. Regime de bens, In Direito de Família e o novo Código Civil, Coord. DIAS, Maria Berenice e PEREIRA, Rodrigo da Cunha, Del Rey- IBDFAM, 4 ª e., 2005, p166.

[3] Ver neste sentido MOZOS, José Luis de Los. Comentários ao Código Civil y Compilaciones Forales, Tomo XVIII, vol. 1º, Editoriales de Derecho Reunidas, Madrid, 1982, p.187.

[4] Este princípio pode ser está sob certa forma recepcionado pelo art. 1.513 do Código Civil brasileiro.

[5] MOZOS, José Luis de Los. Ob. cit., Tomo XVIII, vol. 1º, p.209.

[6] Art. 977 do CC. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

[7] Art. 5º, XXII [ é garantido o direito de propriedade], XXIII [a propriedade atenderá a sua função social], art.170, III [função social da propriedade].

[8] CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável, Saraiva: São Paulo, 2002, p.82.

[9] SANTOS, Simone Orodeschi Ivanov dos. União estável, regime patrimonial e direito intertemporal, São Paulo: Atlas, 2005, p.126.

[10] COLTRO, Antônio Carlos Mathias. “Referências sobre o contrato de união estável”, In Questões controvertidas no direito das obrigações e dos contratos, vol. 4, Coordenção DELGADO, Mário Luiz e ALVES, Jones Figueiredo, São Paulo:Editora Método, 2005, p.426.

[11] Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

[12] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Regime legal de bens no companheirismo, In Questões controvertidas no novo Código Civil no Direito de família e das Sucessões, vol. 3, São Paulo: Método, 2005, p.357.

[13] Esta foi a decisão tomada pela 7ª Câmara Cível do TJRS, na Apelação Cível nº 70007651292, datada de 30 de junho de 2004 e relatada pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Na mesma linha de pensamento a Apelação Cível nº 70009937582, também da 7ª Câmara Cível do TJRS, relatada pelo Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, em julgamento datado de 10/11/2004 e assim ementado: “ DIVÓRCIO DIRETO. RECONVENÇÃO. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL EM PERÍODO ANTERIOR. INOCORRÊNCIA. 1. Embora viável o pedido de reconhecimento de união estável em período anterior ao casamento,não se reconhece tal característica ao relacionamento entretido quando não comprovada a estabilidade da relação nem a intenção de constituição de uma família. 2. Quando existe união estável antes do casamento, não se cogita de partilha quando o casal estabelece, em pacto antenupcial, a incomunicabilidade de todos os bens havidos antes e durante o casamento. Recurso desprovido.”

[14] CAHALI, Francisco José. Ob. cit., p.81.

[15] MADALENO, Rolf. Direito de Família e o novo Código Civil, Ob. cit., p.170.

[16] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. União estável, seguida de casamento com separação de bens e patrimônio adquirido durante a convivência, In O Direito de Família após a Constituição Federal de 1988, Org. COLTRO, Antônio Carlos Mathias, Celso Bastos Editor: São Paulo, 2000, p.120.

[17] CAHALI, Francisco José. Ob. cit., p.82.

[18] Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

[19] WAMBIER. Teresa Arruda Alvim. Ob. cit., p.121.

[20] LEONI, Guilherme Loria. Responsabilidade civil, a exclusão da responsabilidade do cônjuge ou convivente nas relações contratuais conjuntas por inexistência de proveito comum, Juruá:Curitiba,2005, p.59.

[21] Art. 114 do CC – Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.

[22] Art. 1.725 do CC – Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

[23] Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

[24] Neste sentido é a lição colacionada por SANTOS, Simone Orodeschi Ivanov dos. Ob. cit., p.128: “A retroatividade das disposições do contrato de convivência também encontra limitação, a fim de se preservarem negócios efetuados pelos conviventes com terceiros, levando em conta o patrimônio do devedor, no momento em fora foram celebrados.