A Infidelidade e o Mito Causal da Separação

Autores: Rolf Madaleno

Sumário

  1. Introdução.
  2. A postulação causal do Código Civil de 1916.
  3. A postulação causal no novo Código Civil.
  4. O adultério, a mais infamante das causas separatórias.
  5. A infidelidade conjugal.
  6. O ciúme como causa da infidelidade.
  7. Os infelizes conjugais.
  8. O recasamento dos infiéis e das vítimas da infidelidade.
  9. A dignidade da pessoa humana como causa exclusiva de separação.
  10. Bibliografia.

1. Introdução.

            Dobram os sinos em ruidoso festejo pela aprovação final do novo Código Civil brasileiro, depois de passar por mais de duas décadas de morosa elaboração legislativa e prometendo substanciais mudanças, especialmente no campo do Direito de Família. Com previsão para vigência efetiva dois anos depois de sua sanção, terá a sociedade brasileira um inusual, mas, ainda oportuno período de vacatio legis, para a maturada absorção das novidades codificadas à serviço do direito familista nacional. Respeitadas as opiniões em contrário, entretanto, um quarto de século é tempo demasiado para simplesmente consagrar mudanças já conquistadas há bastante tempo por legislações soltas ou estampadas na Carta Política de 1988 e que foram construindo sólida identidade com a reiteração da jurisprudência brasileira.

            Histórica passagem de radical mudança dos clássicos direitos familistas brasileiros, decorre exemplificativamente, da aprovação da Lei do Divórcio em 1977, ao instituir a dissolução não causal do casamento pela via do divórcio, mantendo-se a legislação, entretanto, atrelada ao habitual costume de condicionar a prévia separação judicial, substitutiva do primitivo desquite, à incondicional demonstração processual da culpa conjugal.

            E embora a lei divorcista tenha abandonado o sistema das causas separatórias taxativamente enumeradas no artigo 317 do Código Civil respeitantes ao adultério, a tentativa de morte, à sevícia ou injúria grave e ao abandono do lar por dois anos ou mais, ainda assim, deixou para o magistrado a tarefa de equacionar os conflitos matrimoniais, aferindo no espectro do casuísmo da injúria grave ou da violação de algum dever do casamento, a preservação pelos cônjuges, dos valores morais e éticos da família brasileira.

            O permissivo da separação por justa causa, tal como concebido pelo artigo 5º da Lei nº 6.515/77, tem sob a sua inspiração o princípio da culpa e em decorrência desta concepção, só o cônjuge vitimado pode pedir a separação. As causas separatórias consistem todas em comportamentos culposos, violadores de deveres conjugais, considerados merecedores de censura social, como o adultério, sevícias e injúrias.[1]

2. A postulação causal do Código Civil de 1916.

           

Abstraído o gênero da separação remédio, fundado na doença mental de um dos cônjuges, com a Lei do Divórcio passaram a vigorar duas formas corriqueiras de separação litigiosa, uma delas apontada para o princípio da culpa, a chamada separação subjetiva e a outra direcionada para o princípio da ruptura objetiva, desatrelada da razão causal.

            A causa concreta da separação judicial está contemplada no caput do art. 5º, alicerçando a separação qualquer conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento, tornando, numa ou noutra hipótese, como em tempo próprio complementa Arnaldo Rizzardo, [2] insuportável a vida em comum. No conceito de conduta desonrosa ingressam os valores subjetivos dos cônjuges, quando se vêem atingidos pelo parceiro em sua honra e dignidade, ou expostos pelo esposo que se deixa levar pelo alcoolismo, pelo uso de tóxicos, ou que se entrega aos desvios sexuais, segundo exemplos colacionados por José Abreu.[3]

            A violação dos deveres do casamento traduz-se no compromisso da recíproca fidelidade, da vida em comum sob a mesma vivenda, a mútua assistência, o sustento, a guarda e a educação dos filhos, situações que vão tipificadas no artigo 231 do Código Civil de 1916. Presente a infração a pelo menos um desses deveres, tem o cônjuge presumivelmente prejudicado, acesso ao processo culposo de separação judicial, obrigatoriamente evidenciando haver tornado-se insuportável a sua vida conjugal.

            Na conduta desonrosa o enquadramento da lesão à dignidade depende da apreciação subjetiva do julgador, avaliando os seus reflexos na modelagem sócio-cultural dos separandos.

            Portanto, tanto no catálogo da atual legislação separatista e mesmo nas projeções do novo Código Civil agora aprovado pela Câmara dos Deputados, não cabem dissoluções unilaterais com suporte em matrimônios meramente incompatíveis, ou pela intolerância de idéias, fracasso no diálogo, ausência de afeição e insuportabilidade da vida mútua, pois ao contrário de países com legislação familista mais adiantada, ficou mantido o exame judicial da causa na separação.

3. A postulação causal no novo Código Civil.

            Na contramão da lúcida jurisprudência, resgata o novo Código Civil a plenitude do exame da culpa pela quebra do casamento, mantendo viva a relação de débito e crédito, de certo e errado, do bem e do mal e a irresgatável angústia do perdão, pois como diz Carlos Pinto Corrêa: " É a sacralização do dever e que retira a possibilidade de desfazer a culpa, pela neutralização do ato, já que o débito não se limita à simples consciência moral, mas é uma imposição da justiça, a quem cabe aplicar o castigo." [4] Estranha pesquisa que concede uma importância aparente à separação sustentada em culpas, semeando inúteis discórdias conjugais, para prevalecerem critérios objetivos de resolução processual.

            A nova lei familista não pretendeu se esquecer da falha do sujeito conjugal, simbolizando a separação judicial litigiosa motivada em causa culposa, a letra escarlate do dever moral que marca o consorte culpado.

            Frente a esta hostil insistência do legislador em seguir fiel ao arcaico princípio da ruidosa ruptura judicial do casamento, os processos de separação seguirão servindo para dramatizar vínculos já desfeitos pela completa abstração da afeição, único nutriente de uma verdadeira convivência matrimonial. Não sendo ainda suficiente para a ruptura, o princípio supremo da dignidade da pessoa humana, onde a própria vontade separatória comprova às claras, que a convivência se faz impossível. Condutas desonrosas e violações aos deveres matrimoniais seguirão ocupando espaço que não mais encontra amparo na contemporânea cultura da conjugalidade brasileira.

             Direcionado o próximo código para a ética da correspondência de valores morais do casamento, segue destacado o adultério como a mais grave das infrações dos deveres conjugais, séria injúria e grave ameaça à vida nupcial.[5]

Tipifica o adultério uma relação sexual ilegítima, de um dos cônjuges que mantém de livre vontade e fora do casamento, intercurso sexual com outra pessoa de sexo diverso, apartando-se da exclusividade nupcial destas relações. Usualmente, significa ajuntamento carnal ilegítimo de um homem com uma mulher, sendo um dos dois, ou ambos, casados, diz Maria del Rosario Diego Diaz-Santos.[6] Segundo Diaz-Santos, a Lei Mosaica já tratava o adultério como um delito muito grave, castigado com a morte dos culpados, enquanto no Egito a mulher adúltera sofria a mutilação de seu nariz, a morte era reservada para o seu amante. Já na Índia o adultério implicava em dupla ofensa, aos deuses, e a indesejada  mistura de raças, devendo a mulher ser devorada por cachorros em praça pública.[7] Entre os chineses, caso a adúltera tivesse planejado a morte do esposo, ela era submetida ao suplício da morte lenta, informa Ester Kosovski,[8] consistindo em mutilar pouco a pouca a adúltera, numa ordem determinada por sorteio de pedaços de papel, nos quais estava escrita a parte do corpo a ser cortada. Em Roma a mulher adúltera já fora castigada com o desterro e o confisco de metade de seu patrimônio, permitindo ao tempo de Constantino, o direito de o pai ou o marido matar a ambos os adúlteros quando surpreendidos em flagrante. Na era de Justiniano, a adúltera era açoitada e encerrada num mosteiro e se durante dois anos o marido não a reclamasse, usando do direito de perdoar, ou viesse a falecer sem perdoá-la, a superiora do convento designava as religiosas para aplicar-lhe o castigo e a surra, diante de toda a comunidade.[9] Segundo ainda Diaz-Santos, é no Direito Romano que nasce a figura da tentativa frustrada de adultério, que começa a ser considerada como uma injúria e também passa a ser reconhecido o perdão como causa de extinção da responsabilidade, quando o marido permanecia ao lado da esposa adúltera.[10]

            Em contrapartida o adultério masculino só poderia ser punido se fosse praticado com mulher casada, sofrendo o varão a punição não por ser adúltero, mas por ser cúmplice do adultério da mulher. Sempre foi muito tolerada a infidelidade sexual masculina, a ponto do dever de fidelidade ser relativo para o homem e absoluto para a mulher, tradicionalmente posta em situação de inferioridade. E em tempos nem tão distantes, ainda era ardorosa a tese da legítima defesa da honra conjugal, para justificar e absolver o crime passional. 

4. O adultério, a mais infamante das causas separatórias.

 O adultério não é a única forma de violação do dever de fidelidade, que tem conceito muito mais amplo, estando o adultério apenas na ante-sala da infidelidade. Fidelidade é gênero do qual o adultério é apenas uma das espécies de infração.[11] Dependesse o divórcio da prova direta do adultério e raros seriam tais processos, aceitando a jurisprudência a presunção do adultério quando demonstrados deslizes conjugais flagrados na conduta leviana ou irregular do cônjuge com terceiro, a excessiva intimidade ou afeição carnal com pessoa de outro sexo, conforme lição preciosa de Yussef Said Cahali.[12]

É que a fidelidade supõe exclusividade do débito conjugal, uma vez que com o casamento, cada cônjuge renuncia à sua liberdade sexual, lançando mão do direito de unir-se sexual ou em íntima afetividade com qualquer outra pessoa diversa do seu consorte. De sorte que, as simples carícias com um terceiro, afora a circunstância de lesarem os sentimentos e a consideração social do outro cônjuge, permitem presumir que destas intimidades possa ou já tenha resultado o adultério.

Já no Direito Muçulmano, informa Teresa Estevez Brasa,[13] ao dever de fidelidade é adicionado o costume de a mulher permanecer com um véu perante toda a pessoa que não seja o seu marido ou parente de grau mais próximo, que seriam aqueles parentes com os quais existe impedimento de contrair matrimônio. Assim sucede, porque mostrar o rosto seria uma provocação quase equivalente ao adultério, representando o véu uma distinção para a mulher muçulmana, porquanto só não as usavam as mulheres escravas e as de má fama, pois representa o véu uma forma de proteção, para evitar que a mulher seja molestada.

É amplo portanto, o conceito de infidelidade, constituindo o adultério apenas uma de suas espécies.[14] Contudo, a fidelidade muito mais representa um estado de espírito do que um mandamento legal, diz Domingos Sávio Brandão Lima.[15] No direito brasileiro que segue a cultura ocidental, construída à luz dos costumes judeus-cristãos e que restringem as relações sexuais à figura dos cônjuges, quebrar o dever de fidelidade num relacionamento que deve ser eminentemente monógamo, é romper com um acordo conjugal que se sustenta no amor, na estima e no mútuo respeito ofendendo ademais, a instituição jurídica do casamento.

5. A infidelidade conjugal.

Ensina Juan Faílde que [16] "a fidelidade enquanto virtude moral somente conduz a cumprir com exatidão quando foi prometida; porém, desde o plano jurídico, é dizer, quando está imposta por lei, a fidelidade passa a ser objeto de uma obrigação que pode ser essencialmente moral (vínculo ético), em cujo caso, seu conteúdo consiste no modo como serão cumpridos outros deveres e obrigações determinadas pela lei." E como conteúdo ético e jurídico, a fidelidade conjugal não se limita a obrigação de fidelidade sexual, mas sim, a aliança matrimonial importa em preservar essa fidelidade moral.  Frank Pittman[17] define o adultério como o ato sexual fora do casamento, ao passo que a infidelidade seria uma desonestidade sexual dentro do casamento. O adultério é contra a lei ou contra a vontade de Deus, complementa Pittman, mas a infidelidade é contra o casamento, exatamente porque rompe os acordos conjugais que variam de casal para casal, de cultura para cultura e da própria condição social dos conviventes , mas que representam sempre, alianças formadas com o objetivo de dar paulatina estabilidade ao casamento.

Para este grande terapeuta familiar estadunidense, a maior ameaça da infidelidade não está no relacionamento sexual, mas sim, na traição da confiança, gerando suspeita, insegurança e uma perturbadora desconfiança pela possível e temerária perda do parceiro, aumentando o senso de desvalorização da pessoa atingida pela traição.

6. O ciúme como causa da infidelidade.

            Situações conjugais existem de alienante e possessivo ciúme do parceiro, que acabam interferindo e molestando a liberdade do outro companheiro, alvo desta obsessão, criando todos os elementos de gradual distanciamento entre o casal. Para Gley Costa[18] o temor de perder a pessoa amada faz com que a infidelidade ocupe um lugar destacado no contencioso conjugal.

 Explica Frank Pittman,[19] existirem pessoas ciumentas que tentam forçar o parceiro a sacrificar a sua autoconfiança para nivelar o casamento, ficando apavorados quando suas esposas encontram empregos, atividades e relacionamentos que as tornam mais confiantes e menos dependentes.

            Estas situações atuam com freqüência na motivação separatória de uma mulher que se sente tolhida em sua liberdade pessoal e que não vê mais qualquer sentido em manter uma relação nupcial ou mesmo de união estável, desenvolvida em clima de ciúme e desconfiança, recebendo diuturnas críticas sobre seus valores, suas relações, profissão e planos de crescimento pessoal. Pittman lembra ainda, daqueles indivíduos que têm tanto medo de uma traição, que querem controlar os pensamentos e as fantasias do parceiro e prossegue este notável autor: " estas pessoas, na verdade, ficam com ciúmes dos pensamentos ou sonhos sexuais do parceiro, de olhares para alguém atraente que passa na rua, de fantasias e até mesmo de relacionamentos anteriores." [20] Estão sempre querendo saber o que seu parceiro está pensando, estão sempre imaginando que a pessoa tão loucamente amada possa haver deixado de amá-la, ou esteja gostando de outro e que até já se interesse por terceiro.

Parceiros ciumentos e inseguros, mostram a cada passo uma maior dependência afetiva e psicológica em relação à esposa ou companheira, precisando que elas tomem a iniciativa e procedam à resolução das dificuldades e problemas que usualmente arrostam a vida conjugal, com filhos, encargos, tarefas e exposições que nem sempre os homens sabem como realmente administrar.

            Esta troca sutil dos papéis conjugais, associado a um constante e incontrolável estado de ciúmes, gera cobranças e acusações que só aumentam a distância, destruindo por vezes, num breve passar do tempo, o relacionamento já contaminado pelo insidioso vírus do ciúme.

            Tão obcecadas pela loucura da possessão, sequer se dão conta que os relacionamentos afetivos não se sustentam pela anulação ou pelo medo, como se pessoas amadas pudessem ser reféns da intimidação.

            Não fica difícil compreender que neste estado de carência, parceiros intimidados ou negativados em sua auto estima, começam a aprender a escapar destas suas relações de todo improdutivas e contam muitas das vezes, com o encanto e o auxílio de um novo romance, que promete nascer destituído de todas as imperfeições do atual casamento.

            Estes casos que afloram com facilidade diante da fragilidade do cônjuge agredido em sua estima pessoal, servem com freqüência, como uma eficaz tentativa de escapar do casamento. Noutras situações, ao revés, os relacionamentos de infidelidade bem se ajustam para estabilizar o casamento, diz ainda Pittman, ou servem como uma séria tentativa de sobreviver ao casamento.[21] Por certo, é deste paradoxo que decorre a afirmação de que, tanto a fidelidade quanto a infidelidade, por caminhos inversos, operam no sentido de buscar segurança e estabilidade emocional, [22] buscando o cônjuge, com isso, preencher o seu inquietante estado de insatisfação.

Grande parcela dos homens tem menor preocupação com o fato de estar ou não satisfeito com as núpcias, escreve Frank Pittman e toma suas decisões sobre as infidelidades sem referência consciente ao seu nível de satisfação matrimonial - as mulheres que conquistam são prêmios ou propriedades.[23]

                       

            7. Os infelizes conjugais.

             Há situações de requinte no ato de exercer a secreta infidelidade conjugal, existindo namoradores, prossegue Pittman,[24] que mantêm o seu casamento em um estado de guerra quente ou fria para poderem ter seus casos. Existem outros arranjos nupciais, onde parceiros decidem seguir casados porque isso é mais interessante para a sua vida social, ou satisfaz a família, têm vantagens profissionais ou econômicas, mesmo porque, o divórcio implica em elevados custos. Enquanto isto mantêm relações adulterinas, pois como em arremate conclui Frank Pittman com o inegável brilho de suas conclusões relacionadas com a infidelidade conjugal, ele se convenceu e esta constatação parece ser real, de que quando um casamento não é uma ameaça à vida e ao movimento, vale à pena mantê-lo em pleno curso.[25]

            8. O recasamento dos infiéis e das vítimas da infidelidade.

Segundo observação colacionada ainda por Frank Pittman,[26] aparentemente, seriam inevitáveis os desastres de romances que serviram para pular de um casamento para outro, sem que houvesse uma parada para descansar entre as duas relações. Deve-se este alto índice de fracassos destas relações trampolim e sem intervalo para reflexão, dentre várias interferências negativas, destacando-se dentre as causas, a culpa que as pessoas carregam por haver destruído uma família e causado intensa dor. Aliás, convém recordar na prática judicial, quão raro são realmente as separações nitidamente amigáveis, posto que demandas de aparente consensualidade, escondem nas entrelinhas dos acordos levados para a homologação judicial o alto preço da iniciativa separatória, como paga sempre insuficiente do amargado sentimento de rejeição. Possivelmente, só esta indigna usura, como única alternativa para sair de um desgastado casamento, permite compreender quais os reais custos que se escondem  por detrás de uma separação litigiosa e a cobrança tenaz do cônjuge traído ou abandonado, que ameaça provar a culpa advinda da infidelidade conjugal, consumada ou não.

Pittman entende existir pouquíssima probabilidade de que dois novos companheiros estejam igualmente sintonizados com os sacrifícios que foram precisos enfrentar para uni-los. As expectativas são muito grandes em razão do elevado custo emocional que desgastou o casal envolvido numa relação de infidelidade.

Outro importante fator de dificuldade para o recasamento de pessoas adúlteras, que se aventuraram na reconstrução de suas felicidades, ou apenas na felicidade daquele que estava casado, sofre forte  influência econômica, temendo arcar com novo prejuízo de um divórcio que já lhe tomou significativa parcela de bens materiais. Diz Frank Piitman que as pessoas geralmente protegem o dinheiro no novo casamento, especialmente se têm filhos de outros casamentos, procurando algumas vezes firmar constrangedores acordos antenupciais.[27]

Pesa a própria desconfiança acerca do grau de fidelidade de quem foi infiel para ingressar numa nova relação, maculando seu vínculo antecedente com o sinete da deslealdade afetiva e reduzindo à pó, as promessas de eterno respeito e estima.

           

            9. A dignidade da pessoa como causa única de separação.

           

Com todo esse borbulhante estado de espírito, fácil entender porque ainda prevalece na maciça jurisprudência familista brasileira, a idéia de um processo judicial litigioso ser eminentemente causal, empenhado na busca do consorte responsável pela frustração do matrimônio. O conflito judicial é posto à serviço desta estranha e insistente tarefa de encontrar o vencedor do litígio, muito embora, o propósito da separação e essa precisava ser a mensagem do Judiciário, deveria ser apenas o de resolver o conflito conjugal, buscando compreender e superar as emoções embaçadas pela ruptura da união. É como referido noutro trabalho, já faz tempo que tem se mostrado débil e inútil o esforço processual que pesquisa a gênese culposa da falência conjugal, porquanto, de nada adianta e , disto se aperceberam os operadores do complexo ramo familista do direito, procurar um protagonista que possa ser responsabilizado pela ruptura do matrimônio, pois todo este culto e empenho à causa culposa de fim de casamento, só tem servido para aumentar tristezas e humilhações.[28] A razão está com Pittman quando afirma ser impossível ter razão e ser casado,[29] afigurando-se cada vez mais sem sentido valer-se do Judiciário para atestar a culpa de um cônjuge e a provável inocência do outro, atestando publicamente, a quebra de seus acordos conjugais.

            Andam na contramão da modernidade e dos princípios constitucionais que norteiam a dignidade da pessoa humana, julgados que condicionam o decreto separatório à inexorável prova da culpa do cônjuge acionado, sujeitando os esposos a viverem ao menos no seu subjetivo estado de casados, se for deficiente a mostra processual da culpabilização. Assim foi decidido por exemplo, na Apelação Cível nº 000.197.180-3/00 da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, rejeitando a pretensão judicial da separação litigiosa, diante da ausência de prova das alegações que alicerçavam o pedido inicial.[30]

            Também na Apelação Cível nº 70001806009 da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi ordenada a nulidade da sentença monocrática, pois a separação havia sido postulada com escora na violação grave dos deveres do casamento e a sentença decretara a separação judicial com base no tempo de separação de fato, configurando fundamento diverso daquele posto na inicial.[31] Embora fosse consenso de ambos os cônjuges a impossibilidade de reatarem a vida conjugal, prevaleceu o princípio da causa subjetiva da separação, cometendo às partes demonstrarem os motivos da admitida derrocada conjugal e nulificada a sentença, seguirão os litigantes atrelados apenas pelo Poder Judiciário, que continuará fomentando a pesquisa causal de sua irreversível separação fática.

            O voto vencido argumentou estar atenuado o princípio da culpa nas dissoluções das sociedades conjugais, devendo prevalecer o princípio apenas da ruptura, como na esteira dessa nova e arejada orientação jurisprudencial verteram recentes decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, emprestando real valor jurídico à impossibilidade de manutenção do casamento, e declarando a  sua fissura apenas pela evidente ausência de afeição.[32]   

            O único caminho aceitável e que infelizmente não foi visionado pelo novo Código Civil brasileiro, respeita às causas objetivas da separação, que trilha pela total abstração da culpa na separação judicial, servindo como suficiente motivação, a própria voluntas divortiandi, da qual emana às claras, que a convivência é impossível, pois se não o fosse, com efeito que o autor da demanda separatória não a promoveria.

            A Carta Política em vigor, coloca a família como esteio da sociedade, dirigidas todas as condições para a realização da dignificação pessoal, em que a separação judicialmente decretada, livra os cônjuges ou conviventes, da degradação de continuarem sendo infelizes, ou de que ainda passem pela infelicidade de pesquisarem longamente em juízo, como condição de legítima ruptura de seu casamento, toda a sorte de causas culposas e altamente subjetivas de sua falência matrimonial, onde o processo judicial serve tão-somente, como palco para desafogo das já propaladas tristezas e humilhações. Atuam na exata contramão do primado constitucional que vem cravado no pórtico da Carta Federal Brasileira de 1988, em seu 1º artigo, como sendo suporte do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana.

            Não se faz possível aceitar qualquer forma de gradação da dignidade, princípio supremo, ponto de partida da existência humana e como direito natural do cidadão, não aceita qualquer espécie de transigência.

            Sendo absoluta a dignidade humana, não podem existir conflitos de dignidade, sugerindo que eventual responsabilidade pelo fim do casamento pudesse gerar, em nome do interesse do Estado em preservar um matrimônio, ato judicial que mantivesse união já rota pela vontade unilateral. Pouco importa que a causa tenha sido a mais infamante, dentre as várias razões de separação que sempre cuidaram de relativizar no sistema separatório brasileiro, o sagrado princípio da dignidade, única causa que na atualidade deve autorizar a separação.

            A processualística e o direito familista brasileiros devem deixar de uma vez por todas, de ocupar o Judiciário para desenvolver longas demandas, com intensa carga de litígio e de ressentimentos, conferindo ao juiz, o equivocado direito subjetivo de graduar a dignidade humana de quem não quer mais continuar casado.

            Numa época em que até a infidelidade virtual começa a tomar espaço da doutrina brasileira, como uma nova especialização do Direito de Família na pesquisa culposa da separação, precisamos nos dar conta de que a falência conjugal é sempre obra de dois, e que notas mais tristes, violações graves ou condutas injuriosas praticadas dentro de uma relação nupcial, onde foi prometida eterna fidelidade, essa modelagem conjugal já não mais existe, pois como disse Vinícius de Moraes, o poeta da paixão: " o amor não é eterno posto que é chama, mas é infinito enquanto dura."

           

•10.     Bibliografia.

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* Advogado especializado em Direito de Família e Professor Universitário, Presidente Seccional do IBDFAM do RS.

[1] OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família (direito matrimonial), Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1990, p.450.

[2] RIZZARDO. Arnaldo. Separação e divórcio, In Direito de Família contemporâneo, Coord. Rodrigo da Cunha Pereira, Del Rey, Belo Horizonte, 1997, p.296.

[3] ABREU, José. O divórcio no Direito Brasileiro, Saraiva, São Paulo, 2ª ed., 1992,  p.47.

[4] CORRÊA, Carlos Pinto. A culpa original do Ser, In Culpa, aspectos psicanalíticos, culturais & religiosos, Iluminuras, 1998, São Paulo, p.38.

[5] CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação, 8ª ed. ,Tomo 1, RT, São Paulo, 1995, pp.364-365.

[6] DIAZ-SANTOS, Maria del Rosario Diego. Los delitos contra la familia, Editorial Montecorvo, Madrid, 1973, p.180.

[7] Idem, ob. cit., pp.181-182.

[8] KOSOVSKI, Ester. O crime de adultério, Mauad, Rio de Janeiro, 1997, p.43.

[9] Idem, p.47.

[10] Ibidem, p.183.

[11] COSTA, Carlos Celso Orcesi da. Tratado do casamento e do divórcio, constituição, invalidade, dissolução, Saraiva, São Paulo, 2º vol., 1987, p.757.

[12] CAHALI, Yussef Said., ob. cit., p.381.

[13] BRASA, Teresa M. Estevez. Derecho civil musulmán, Depalma, Buenos Aires, 1981, p.426.

[14] RIZZARDO, Arnaldo. Ob. cit., p.357.

[15] LIMA, Domingos Sávio Brandão. Adultério, a mais infamante causa de divórcio, L. Oren Editora, São Paulo, 1976, p.140.

[16] FAÍLDE, Juan José García. La nulidad matrimonial, hoy, Bosch, Barcelona, 2ª ed., 1999, p.146.

[17] PITTMAN, Frank. Mentiras privadas, Artes Médicas, Porto Alegre, 1994, p.6.

[18] COSTA, Gley P. . A cena conjugal, Artmed, Porto Alegre, 2.000, p.52.

[19] PITTMAN, Frank. Ob. cit., p.51.

[20] Idem, p.54.

[21] PITTMAN, Frank. Ob. cit., p.94.

[22] COSTA, Gley P. .ob.cit., p.57.

[23]  Idem, p.p .99 e 122.

[24] Ibidem, p.159.

[25] Ibidem, p.160.

[26] Idem p.195

[27] PITTMAN, Frank. Ob. cit., p.198.

[28] MADALENO, Rolf. Direito de Família, aspectos polêmicos, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 1998, 1ª ed., p.180.

[29] PIITMAN, Frank. Ob. cit. p.226.

[30] Ementa: "Separação litigiosa. Ausência de prova das alegações. Indeferimento. Alimentos. Dever inescusável. Se as alegações que alicerçam o pedido de separação litigiosa não restaram demonstradas, rejeita-se a pretensão. O dever de pagar alimentos decorre das previsões do art. 227 da Constituição Federal e do art. 231, IV, do Código Civil, cuja interpretação conduz à idéia de que o filho menor deverá ser atendido mesmo com sacrifício dos pais, pois é sagrado o socorro à criança.

[31] Ementa: "Apelação. Separação judicial litigiosa e pedido de alimentos. Decretação da separação por fundamento diverso daquele posto na inicial. Separação de fato por prazo inferior a um ano. Nulidade da sentença. Tendo sido pedida a separação com fundamento na violação grave dos deveres do casamento e tendo o julgador a decretado com base no tempo de separação de fato, quando este não havia sido cumprido, é nula a sentença. Sentença nula. Voto vencido."

[32] Apelação Cível nº 70004100688, da 7ª Câmara Cível: "a) Entretanto, há que se emprestar valor jurídico à impossibilidade de manutenção do casamento, pela ausência da affectio que lhe é própria, não se podendo condenar à convivência dois seres que não mais se suportam, pela singela razão de que não restou devidamente estampada nos autos a culpa sob qualquer de suas formas. Decretada a separação judicial sem culpa, em face da evidente falência do matrimônio." (Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos)